A medida do possível
A política do possível é a que pergunta: o que resiste? o que pulsa apesar? o que não se dobra? o que ainda dança?
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Vivemos tempos em que tudo parece ser insuficiente.
O gesto político, a palavra dita, o cuidado diário, a resistência mínima, tudo parece sempre pouco.
Há quem diga que precisamos ir além, fazer mais, ser mais radicais, mais contundentes, mais coerentes.
Mas talvez esteja faltando outra pergunta: o que é possível, e segundo quem?
A ideia de possível, como quase tudo no mundo moderno, foi sequestrada por uma ontologia que mede, compara, hierarquiza e impõe.
Mas o possível, tal como o pensamento de Eduardo Viveiros de Castro nos sugere, não é uma categoria abstrata. É uma expressão situada, relacional, perspectivada.
Num mundo habitado por múltiplos mundos, onde a floresta vê diferente do humano, onde o jaguar é sujeito, onde o xamã conversa com os mortos sem cair na fantasia, o possível não é universal. Ele não obedece aos critérios da razão ocidental, da eficácia científica, da viabilidade econômica. O possível, nesses mundos, é aquilo que se sustenta no corpo, no sonho, no rito, na continuidade dos vínculos.
E se há uma crise do possível, ela não se dá por falta de imaginação, mas por excesso de centralidade: a incapacidade da modernidade de aceitar que há mundos que não cabem no seu modo de medir.
Viveiros de Castro propõe uma virada radical: não há uma só realidade, há múltiplas ontologias coexistindo. Isso quer dizer que o possível também se desmultiplica. Aquilo que é impossível sob o olhar da tecnocracia pode ser vital sob a lógica de um povo em luta. Aquilo que parece absurdo num comitê de especialistas pode ser sabedoria viva numa aldeia. O que a cosmopolítica nos ensina é que o possível não está dado, ele é criado em relação, em situação, em disputa.
A medida do possível, então, não pode ser padrão.
Ela tem que ser afecção, atenção, escuta.
Ela exige que a gente se desloque, não para traduzir o outro ao nosso idioma, mas para reconhecer que há outros modos de medir.
Medidas que não se expressam em metros ou metas, mas em intensidades de vínculo, em permanência do canto, em respiração com a terra.
A política do possível, nesse sentido, não é a política do consenso, mas do dissenso fecundo.
A política do possível é a que pergunta:
o que resiste? o que pulsa apesar? o que não se dobra? o que ainda dança?
Ela é feita menos de planos e mais de escutas.
Menos de resultados e mais de ritmos.
E nesse tempo em que tudo parece exigir performance, talvez seja preciso afirmar o possível não como limitação, mas como gesto ético.
Fazer o que é possível com medida própria, com medida do corpo, com medida do cansaço, com medida da terra.
Porque, como nos lembram os povos que ainda vivem à margem do tempo industrial:
o impossível é o nome que o mundo central dá para o que não controla.
Mas o possível, o verdadeiro possível,
é aquilo que se move com o mundo, e não contra ele.
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Referências para o texto:
1. A Inconstância da Alma Selvagem (1996)
Contribuição para o texto: desestabilização da ontologia universalista moderna e abertura para outras medidas de existência.
2. Metafísicas Canibais (2009)
Contribuição para o texto: base para a ideia de múltiplos possíveis e da coabitação de mundos não traduzíveis entre si.
3. Há Mundo Por Vir (com Déborah Danowski, 2017)
Contribuição para o texto: o possível, nos mundos indígenas, não é a gestão racional da catástrofe, mas a continuação dos modos de existência plurais e relacionais que escapam ao modelo do “progresso”.
4. A Queda do Céu (Davi Kopenawa & Bruce Albert, 2010)
Contribuição para o texto: ilustra vivamente o que significa viver em outro regime de tempo, realidade e possibilidade.
Música:
▪︎ Metá Metá – “Três Amigos” (do disco MM3, 2016)
Uso sugerido: escutar após a leitura do texto, como antídoto ao consenso sonoro. Um possível que não pede autorização.
▪︎ Moacir Santos – Coisas (1965)
Uso sugerido: escuta meditativa com olhos fechados, como exercício de afinação do corpo ao não previsível.
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No dia 31/07 haverá uma aula online sobre Eduardo Viveiros de Castro. Caso tenha interesse, é só me chamar no privado que envio os detalhes. No mais, aquele abraço.